Desinformação e comodismo do governo levam, de forma equivocada, milhares de cães portadores de leishmaniose a procedimentos de eutanásia.
Leishmaniose: O cão não é o vilão. (Foto: Semana Online)
Enquanto o governo não muda a estratégia de combate à leishmaniose, os cães e seus proprietários ficam reféns da própria sorte, na dependência da divulgação de informações consistentes sobre a doença. Atualmente, a aprovação de vacinas de imunização contra a leishmaniose esbarra na burocracia estabelecida entres os ministérios da Saúde e Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Imagem: Semana OnlineNo ano de 2010, a publicitária Val Reis estava em sua residência quando agentes de saúde do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) de Campo Grande (MS) bateram à porta. A visita teve como finalidade coletar sangue de cães para identificar animais portadores de leishmaniose, uma doença parasitária que pode levar à morte não só cães, mas seres humanos. Na casa de Val havia um único cão, Half, na família há mais de uma década. "O Half era um cão saudável, não tinha razão para alarde", conta. Seis meses depois, entretanto, outra visita do CCZ confirmou que o animal era portador da doença e que, portanto, deveria ser recolhido para eutanásia.
O que era para ser uma simples medida para o controle de uma zoonose se tornou o transtorno de uma família. Com a visita do CCZ, a informação (equivocada) que Val tinha até aquele momento era de que a doença poderia ser transmitida para humanos a partir dos cães. "Foi um choque, a gente nunca espera esse tipo de notícia. Era tudo desencontrado, a gente fica meio sem saber o que fazer. O Half nunca apresentou nenhum sintoma da doença, tanto que refiz o exame várias vezes para acreditar no diagnóstico", conta.
Como não deu retorno ao CCZ, Val relata que dias depois recebeu uma ligação do órgão, que ameaçou aplicar multa caso o animal não fosse entregue. "O Half é um cão que estava comigo há anos, desde que os meus filhos eram pequenos. Eu queria saber o que era a doença e o que eu poderia fazer. Não dava para simplesmente entregar um animal que era parte da família". E assim começou uma cruzada por várias clínicas veterinária em busca de informação até ser instruída corretamente sobre quais os riscos reais de contágio da leishmaniose, modos de prevenção e, principalmente, a possibilidade real de tratamento para seu cão. "Parece que essa desinformação é proposital para que o dono entre em pânico e entregue o cão. Hoje sei que tenho direito de tratar meu cachorro e não me arrependo de nada do que fiz, pelo contrário, faria de novo. Meu cão faz parte da minha vida. Na hora que ele ficasse doente e que mais precisasse de mim, jamais iria abandoná-lo", conta a publicitária.
Na Europa, o tratamento de cães é o mesmo dos humanos e ocorre desde a década de 1940
Imagem: Semana OnlineHistórias como a de Val estão diluídas entre outras milhares não só em Campo Grande, mas em várias cidades brasileiras que, em geral, optam por seguir as diretrizes do Programa Nacional de Vigilância e Controle da Leishmaniose Visceral, proposto pelo Ministério da Saúde. Entretanto, o principal órgão de saúde do país segue na contramão do que é praticado em países desenvolvidos, com bons indicadores no combate à leishmaniose: em todo o mundo, somente no Brasil existe a política de eutanásia de cães soropositivos. Na batalha contra a doença, o cão assume o papel de vilão quando, na realidade, é tão vítima quanto o ser humano.
Políticas de matança
Para boa parte da população, a questão da leishmaniose é tratada no Brasil de forma nebulosa, isso porque há muita desinformação quanto aos procedimentos executados pelo poder público. Atualmente, a maioria das cidades seguem as diretrizes do Programa Nacional de Vigilância e Controle da Leishmaniose Visceral, que se baseiam em vertentes como atendimento ao homem, ações educativas de combate à mosca que transmite a doença, o controle vetorial do inseto transmissor (como borrifações residuais em domicílios, fumacê etc.) e, finalmente, a eliminação dos reservatórios urbanos - ou seja, sacrifício de cães portadores da doença, com o objetivo de reduzir a transmissão ao homem e aos outros cães.
Manter o cão vivo e lhe favorecer tratamento têm se mostrado muito mais eficaz que sua eliminação
Imagem: Semana OnlineO ponto mais polêmico das ações do governo se concentra na matança de cães, o que obviamente provoca reações das mais exacerbadas. Diversos segmentos da sociedade, que inclusive buscaram apoio da comunidade científica, acusam que a eutanásia de cães é uma medida inócua para conter a leishmaniose. Um argumento comum é que em 2010, em Campo Grande, cerca de 11,5 mil cães foram eutanasiados e mesmo assim houve um aumento de 20% do número de casos humanos em relação ao ano anterior. Aliás, é na capital sul-mato-grossense que a ONG Abrigo dos Bichos luta pela divulgação da possibilidade de tratamento da leishmaniose. "A população assiste à questão de uma forma omissa e às vezes sob terrorismo [do poder público]. Por não terem conhecimento jurídico e nem científico, as pessoas acabam entregando seu animal para a morte, sem necessidade", explica a veterinária Maria Lúcia Metelo, presidente da organização. "O que temos hoje é uma política assassina".
A briga atravancada entre protetores de animais e o poder público começa na desinformação generalizada pela impossibilidade do tratamento, atualmente cercado de medidas proibitivas. De acordo com o Manual de Vigilância e Controle da Leishmaniose Visceral, publicação do Ministério da Saúde, o tratamento de cães não é uma medida recomendada, já que "leva ao risco de selecionar parasitas resistentes às drogas utilizadas para o tratamento humano". Para o impedimento, o governo se ampara na Portaria Interministerial 1426/2008, dos Ministérios da Agricultura e da Saúde, que proíbe uso de medicamentos para humanos.
Relatos científicos apontam que cães tratados não só se recuperaram dos sintomas como foram negativados
Imagem: Semana OnlineSegundo a Dra. Sibele Luzia de Souza Cação, presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária de Mato Grosso do Sul (CRMV-MS), o entendimento que existe no governo é razoável por razões biológicas, já que nunca existe risco zero de gerar parasitas resistentes às poucas drogas disponíveis no mercado. "Mas isso nunca foi provado cientificamente", destaca. De fato, o tratamento de cães infectados ocorre desde a década de 1940 na Europa, onde o tratamento é o mesmo dos humanos e até hoje não há relatos de resistências em cepas extraídas de caninos. A ineficiência nos tratamentos só é observada em lugares cujo grau de desnutrição dos pacientes é extremo, como em países da África e na Índia.
Após a portaria, foram surgindo, então, alternativas de tratamento para os cães que não feriam o texto da portaria. "Surgiram alguns protocolos apresentados em vários Simpósios e Seminários de leishmaniose que aconteceram por todo o Brasil, inclusive aqui em Campo Grande. Esses protocolos sempre foram apresentados por médicos veterinários da academia, ou seja, profissionais que estão atuando nas universidades, tanto no ensino como na pesquisa. E eram mostrados resultados contundentes de cura clínica dos animais tratados", diz Cação.
Não é só o cão
Outro argumento de quem combate o modus operandi do governo em relação a leishmaniose é que não só o cão é reservatório do parasita: a leishmaniose é, na verdade, uma doença basicamente de mamíferos. Em 2002, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Universidade de São Paulo (USP) investigaram 11 espécies de mamíferos em Recife (PE). Como resultado, constataram que ratos urbanos também são reservatórios de leishmânias. Além disso, animais silvestres, como lobos, raposas, roedores e marsupiais também são alvo dos flebótomos, os insetos que transmitem a doença pela picada. "O problema da eutanásia é que ela desfoca o alvo principal, que é o controle de vetor. Se o cão foi infectado é porque existe um flebótomo no local. Sacrificar o cão não funciona porque o mosquito continuará em ação, sem falar que existem outros reservatórios que não são cães", explica André Luís Soares da Fonseca, pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
Um veterinário qualificado precisa acompanhar e prescrever todas as etapas do tratamento
Imagem: Semana OnlineA propósito, manter o cão vivo e lhe favorecer tratamento têm se mostrado muito mais eficaz que sua eliminação. Um estudo conduzido por dois anos em São Paulo por pesquisadores da USP e divulgado em 2010 observou que o uso de coleiras repelentes e de inseticidas implicou numa redução de 80% do número de casos de leishmaniose canina e humana, com o diferencial de que o uso das coleiras especiais também ajudou a eliminar o flebótomo. "O tratamento tem função de saúde pública, sim, já que quanto menor a carga parasitária, menor o risco de transmissão", aponta André Fonseca, que também é coordenador da Comissão Estadual de Leishmaniose do CRMV-MS. O cachorro, a propósito, funciona como uma isca para o flebótomo. "Quando o inseto se aproxima do cão, ou ele não pica o animal e morre de fome ou, se o mosquito sugar o sangue, morre com o efeito do inseticida", aponta.
Tratamento e prevenção
Outro mito em torno do tratamento da leishmaniose é que o resultado obtido garante apenas uma sobrevida do cão. Existem diversos relatos científicos nos quais os animais tratados não só se recuperaram das lesões cutâneas e viscerais comuns da doença, como também foram negativados, ou seja, deixaram de acusar o parasita em exames sorológicos. Mas este resultado, assim como no ser humano, varia com o estado de saúde do cão quando o procedimento é iniciado. "O prognóstico depende do estado do fígado e do rim do animal. Com estes órgãos em bom estado, ele vai responder bem ao tratamento. Isso também acontece no ser humano", explica André Fonseca.
Cães que responderam bem ao tratamento contra a leishmaniose. (Foto: Semana Online) - Clique para conferir outras imagensÉ o caso do Bill, cão de estimação do estudante Kayo Laport. Bill, que já tem 10 anos, iniciou o tratamento contra leishmaniose há oito meses, logo após desenvolver sintomas. "A gente não tinha certeza da doença, mas a veterinária tinha alertado para os sintomas.
Fizemos os exames e deu positivo. Depois que a gente soube que tinha tratamento, nem passou pela nossa cabeça a ideia de eutanásia. Hoje o Bill está bem, sem sintomas. Uma vez por mês ele vai ao veterinário para uma avaliação e para tomar alguns suplementos, mas porque ele já é um cão idoso", conta Kayo.
Em geral, o tratamento é realizado em duas etapas, cuja primeira utiliza drogas antiparasitárias por um período que normalmente varia de quatro meses a dois anos e meio, dependendo da agressividade do medicamento. Na segunda etapa, paralela à primeira, remédios que reprimem o crescimento das leishmânias no organismo também são administrados diariamente nos cães, até o fim da vida. Associado aos tratamento clínico, veterinários também prescrevem o uso de coleiras ou de substâncias repelentes, além de dedetização específica nos locais frequentados pelo cão e hábitos de higiene, como manter quintais limpos.
Por fim, exames frequentes são repetidos, em média, a cada quatro meses, para verificar a carga parasitária e o estado de saúde do animal. Um veterinário qualificado precisa acompanhar – e prescrever – todas as etapas da terapia. "O tratamento é uma questão ética pela vida. São duas maneiras de controlar a leishmaniose: uma é matando o animal e a outra é tratando o animal. Então por que eu vou matar em vez de tratar?", conclui André Fonseca.
Outras possibilidades
Mesmo idosos, os cães Half e Bill responderam bem ao tratamento contra a leishmaniose e já não apresentam seintomas da doença. (Foto: Semana Online) - Clique para ampliarEnquanto o governo não muda a estratégia de combate à leishmaniose, os cães e seus proprietários ficam reféns da própria sorte, na dependência da divulgação de informações consistentes sobre a doença. Atualmente, a aprovação de vacinas de imunização contra a leishmaniose esbarra na burocracia estabelecida entres os ministérios da Saúde e Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Mas vale lembrar que, além do tratamento, existem duas vacinas com alto grau de defesa contra a doença, liberadas pelo Ministério da Agricultura: a Leish-Tech e a Leishmune. Existe, também, umaterceira vacina com pedido de liberação, chamada CaniLeish, que já existe na Europa.
Também tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que prevê fim do sacrifício de animais, de autoria do deputado federal Geraldo Resende (PMDB-MS). O projeto é emparelhado com a liberação de vacinas e utilização de coleiras repelentes, além do tratamento - como alternativa a política de eutanásias desempenhada pelo
Ministério da Saúde. O projeto aguarda aprovação na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados.
Por Guilherme Cavalcante