Carlos Henrique Nery Costa, médico
Há alguns dias, fui procurado pela TV para dar uma entrevista sobre calazar, relacionada a uma declaração de uma funcionária da prefeitura de Teresina que a proporção de cães com teste positivo para a doença era muito elevada em alguns bairros, e que se havia notado um aumento do número de pessoas doentes na cidade nos últimos anos. Como sempre, expliquei os sinais da doença para que possíveis pacientes logo procurassem as unidades de saúde. Mas senti com um certo mal estar, pois havia cheiro de morte no ar. Passados uns dias, verifiquei que o mal estar era real quando soube do efeito da minha entrevista. No meu consultório, um paciente disse-me que graças à ela havia entregue o seu amado cão, completamente sem sintomas de doença, para ser morto pela prefeitura por ter um resultado de exame positivo.
Um cão saudável, belo, querido, morto por minhas palavras conduzidas por uma reportagem enganosa e por um ato de terrorismo de estado. Fiquei profundamente abalado. Gostaria de deixar claro que, enquanto eu era entrevistado, disse coisas que não foram publicadas. Por exemplo, alertei ao repórter que os meus anos de estudo de doença haviam me convencido que a matança de animais não reduz o risco para as pessoas e nem impediu a disseminação da doença pelo País afora e para a Argentina, que não existem evidências científicas apoiando esta medida e que me oponho vigorosamente a ela. Nada impediram, no entanto, que o meu depoimento fosse editado de tal modo que a descrição dos sintomas servisse para aterrorizar as pessoas e induzi-las a entregarem os seus animais para a morte, para um sacrifício desnecessário. Para a TV, foi irrelevante o pensamento do entrevistado, desde que atendidos os interesses dos editores.
No ano passado, minha aluna Dra. Ivete Lopes de Mendonça defendeu sua tese de doutoramento, que foi ao cerne do problema. Ela estudou cães destinados à morte. Fez testes para o diagnóstico e os comparou com o que encontrou nas vísceras dos animais. Notou que este mesmo teste que é utilizado pelo governo brasileiro é inútil para afirmar que um animal tem a doença. Por exemplo, se, em Teresina, a chance de um cão sem sintomas ter a doença for 10%, quando o teste dá um resultado positivo, a chance de ter calazar passa apenas para 11% e, mesmo assim, todos são mortos! Ou seja, o teste não acrescenta informação relevante, o que faz com que, em circunstâncias similares, quase 90% dos cães mortos pelo Programa de Controle de Calazar sejam, na verdade, animais sadios.
Também no ano passado, foi publicada uma síntese do conhecimento sobre o assunto encomendada pela Organização Panamericana de Saúde mostrando a ineficácia desta medida. Além disto, o Código Sanitário Internacional, do qual o Brasil é signatário, exige que toda medida de saúde pública deve ter evidências científicas em seu favor. Ainda assim, o Brasil, único no mundo, continua matando cães, induzido pela obsessão mortífera de funcionários públicos pouco esclarecidos e indiferentes às normas.
Este caso revela também outros fatos muito graves, que são as lições de ignorância e de violência institucionais. Lição da irrelevância do conhecimento científico, de falsidades tomadas como verdades pela mídia oficializada, de indiferença às opiniões não oficiais e de banalização da morte, neste caso de seres inteligentes, sensíveis e amados. Assim, o Brasil comporta-se de forma primitiva e brutal, muito longe das características da nação civilizada e desenvolvida que, um dia, nós, brasileiros, almejamos ser.
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